ASSOCIAÇÃO DAS ETNIAS CIGANAS

Família Milos - Rom Kalderash. Glória Miklos, Jorge Michel , Nair (Militsa) Miklos. Década de 1960. Acervo: Aline Miklos.

Ao chegarem à Europa Ocidental, por volta do século X, antepassados dos ciganos contavam a mesma história: que vinham do "Pequeno Egito", uma região da Grécia confundida com o Egito na África. Assim, passaram a ser nomeados em diversas línguas com base nesta narrativa: gypsy (inglês), gitano (espanhol), ou gitan (francês). "Alguns grupos se apresentaram também como gregos e/ou atsinganos" pelo que "ficaram conhecidos também como grecianos (espanhol), tsiganes (francês), ciganos (português) e zingaros (italiano)" (Moonen, 2011).

Há outras denominações: na Holanda e na Alemanha eram chamados "heiden", que pode ser traduzido por "pagão"; e na Fraça de Boémiens, romanichel ou manouches, o primeiro ligado à Boêmia e os outros dois derivados da língua cigana. "Esses termos são denominações genéricas que os europeus deram a estes exóticos imigrantes, mas não consta como os ciganos de então se auto-identificavam" (Moonen, 2011, p. 9 e 10).

Podemos encontrar uma heterogeneidade imensa no universo cigano, tanto etnicamente, quanto socialmente ou em termos de densidade populacional e graus de exclusão/integração social. Entre as diferentes etnias e grupos ciganos a construção de suas identidades e culturas, não seguem um processo homogêneo.

Não há uma essência cultural cigana única, mas sim múltiplas identidades, com distintos grupos, subgrupos, que variam conforme a região e o país onde se movimentam, sendo que costumam se auto-idenficar de três formas:

1) Os ROM, ou Roma, que falam a língua romani; são divididos em vários sub-grupos (sic), com denominações próprias, como os Kalderash, Matchuaia, Lovara, Curara etc.; são predominantes nos países balcânicos, mas a partir do Século XIX migraram também para outros países europeus e para as Américas; (2) os SINTI, que falam a língua sintó e são mais encontrados na Alemanha, Itália e França, onde também são chamados Manouch; (3) os CALON, KALON[1] ou KALÉ, que falam a língua caló, os “ciganos ibéricos”, que vivem principalmente em Portugal e na Espanha, onde são mais conhecidos como Gitanos, mas que no decorrer dos tempos se espalharam também por outros países da Europa e foram deportados ou migraram inclusive para a América do Sul (Moonen, 2000, p. 05 e 06).

Kalon, na língua romanon-chibe, é a palavra utilizada para nomear todas as pessoas “ciganas”, independente de qual etnia. Da mesma forma, a palavra Rom é utilizada para nomear todas as etnias ciganas nos dialetos dos grupos Rom; e a palavra Sinti ou manush para nomear todos os ciganos no dialeto Sintó. Porém, essas palavras também têm significados diferentes em cada língua. No romanon-chibe, Rom significa “homem” e “kalon” no dialeto Rom significa “preto”.

Manush no dialeto Romanon-chibe é a palavra para significar cavalo. Vale observar que os grupos Kalon se ligam culturalmente ao manuseio e as andanças de tropas de equinos, mas principalmente, os cavalos. Já os subgrupos Rom, se ligam a doma de outros bichos ou então as suas profissões, como os Kalderash, que trabalham o cobre e metais; os Lovari, que trabalhavam com lobos, os ursari, com ursos...

[1] Segundo Moonen (2000, p. 4) as referências bibliográficas não chegam a um acordo sobre a grafia das (auto) denominações ciganas. Porém, baseado na Revista de Antropologia, (volume 2, 1954 p. 150-152), como ele, em observação à "Convenção para a grafia dos nomes tribais" (indígenas), aprovada na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia (1953)” opto em utilizar “os Rom” e não “os Roma”; da mesma forma “os Kalon”, “os Sinti”, etc.

Família Sinti proveniente da Itália. Recém-chegados ao Brasil, no início do século XX, em SãoPaulo.Fonte:https://caminhosciganos.org/sinti/

Segundo Silva Júnior (2018), a palavra “cigano” foi criada pela sociedade majoritária de maneira a homogeneizar diferentes etnias sob uma mesma nomenclatura. Historicamente, este nome, em várias línguas europeias (gypsy no inglês, ou gitano no espanhol, por exemplo) foi carregado de estereótipos e uma carga semântica muito negativa.

O que motivou o movimento cigano europeu a propor uma mudança nos termos nomeadores para tais grupos, substituindo-se a palavra "cigano" e seus equivalentes nas línguas europeias pelo termo "Rom", “Romá” ou "Romani", como nova auto-denominação, menos carregada de estereótipos (idem).

Mas esta nova terminologia não está isenta de conflitos, na medida em que é questionada especialmente pelos Kalon e pelos Sinti, que não se sentem representados nesse termo, que diz respeito a forma com que grupos e subgrupos da etnia Rom se autonomeiam, um fato que demonstra como a identidade só pode ser compreendida como um processo negociado e político de diferenciação. Ainda que haja uma tendência para nomear a todas as etnias ciganas de Rom ou Romá, inclusive com indicação da ONU para tal; não podemos classifica-las desta forma.

A palavra Romani tanto é um patronímico de “Romá” ou de cigano, como é utilizada para nomear a língua dos grupos Rom. Se seguíssemos ao pé da letra, não poderia ser utilizada para classificar a todas as etnias ciganas, mas por uma questão de fluidez aqui nesse texto, romani aparece como sinônimo do termo “ciganos” e para indicar a todos os ciganos, sejam eles Rom, Sinti ou Kalon.

O sistema de organização sócio-cultural, que é bastante rico e complexo, composto de inúmeros elementos. São os modos de viver e estar-no-mundo e de gerir a vida, símbolos, mitos e rituais, que se configuram como (de)marcadores culturais, que estão mais aparentes e são mais flexíveis, sujeitos à mudança e às hibridações, pelo que também costumam ser mais heterogêneos.

Do tronco étnico Calon, o casal de ciganos mineiros Maria Madalena e Anésio Rodrigues Cunha, ancestrais da comunidade Calon mato-grossense. Arquivo AEEC.

Os demarcadores simbólicos permitem a existência dos sistemas de diferenciação e identificação e são o corpo desta concepção filosófica e deste estilo de vida, mais maleáveis e móveis. Silva Júnior (2018) elenca alguns destes pontos fundamentais do sistema de organização social kalon:

a) a organização sócio-cultural com base na família e o respeito a todos os papéis consanguíneos ou por aliança (pai, mãe, filho, avô, tio, sobrinho, genro, cunhada, sogros, primos, bisavôs, concunhados, noivos, padrinhos, afilhados, etc), costumes, tradições, rituais e mitologias nela envolto, incluindo aí aqueles que considero como rituais mais marcantes da vida: o nascimento, o casamento e a morte;

b) uma organização sócio-política que se estrutura hierarquicamente pela idade, onde os mais velhos, os chamados tios e tias de honra, de respeito, de valor e de vergonha, costumam ser as autoridades máximas de fonte e aplicabilidade da filosofia e dos sistemas de ação e de organização social da kalonidade e das leis de aconselhamento e apaziguamento, mas também do namoro e do casamento;

) uma estética do mundo rural, expresso nas músicas sertanejas e no estilo de vida, como os trajes dos kalons brasileiros, que inclui acessórios com dentes de ouro, muitas cores, botas e chapéus para os homens; e vestidos e saias longos, rodadas, com estampas coloridas, babados e rendas; ou ainda o cavalo e as tropas no nomadismo como símbolo cultural;

d) o trabalho tradicional na gambira, que inclui trocas de bens de todos os tipos e espécies, mas preferencialmente equinos, bovinos, carros, motos e eletrodomésticos, objetos de segunda mão de uma forma em geral;

e) o respeito ao sentimento e a intensidade do viver o hoje: paixão, amor, emoção e dor, sofrimento, alegria, afeto, o amor e a solidariedade, como elementos constantes, vividos no dia-a-dia, no presente, onde o ser humano é mais importante do que os bens materiais e financeiros;

f) as línguas ciganas utilizadas como o principal identificador de outro kalon e mais, como estratégia de defesa e diferenciador cultural dos não-ciganos; mas também como aquela que guarda resquícios das origens, como símbolo do modo de viver, que é lúdico, como respeito à oralidade e a possibilidade de negociar para sobreviver; de cantar para se alegrar; ou de aconselhar nos momentos de dúvidas e de desafios; ou de apaziguar nos conflituosos e caóticos;

g) outros elementos como: a espiritualidade e a fé como elementos presentes muito fortemente e isso independente de religião; a comida, como elemento fundamental para o bem-estar, o viver e a saúde; o nomadismo, forçado ou não, como elemento cultural.